Conjurador de paisagens oníricas cinematográficas que beiravam o pesadelo, criador de imagens que se queimavam na parte de trás das pálpebras, o diretor (e ator, músico e artista) David Lynch criou ele mesmo uma figura indelével. Mais notavelmente, havia seu cabelo. Extremamente grosso, mergulhando em direção ao céu em uma voluta de desenho animado, o penteado de Lynch, uma crista de galo viril, era como o perfil de Alfred Hitchcock ou o tapa-olho de John Ford – inerentemente caricatural e tão distinto que quase merecia um CEP.
O cabelo, porém, era apenas um aspecto de uma personalidade visual nitidamente gravada, ainda mais potente porque era composto de elementos básicos. E cigarros.
Intrínsecos à personalidade do Sr. Lynch estavam os cigarros que ele fumava na infância (em algumas entrevistas, ele afirmou ter adquirido o hábito aos 8 anos), o que pode ter contribuído para sua morte na quinta-feira aos 78. Ele parecia ter nascido procurando um cinzeiro.
Os cigarros são quase insuperáveis entre os acessórios letais no apelo que exerceram ao longo da história cinematográfica, mas poucos diretores os trataram com tanto entusiasmo na tela quanto o Sr. Lynch, ou foram mais viciados neles na vida real. Mesmo depois de ser diagnosticado enfisema em 2020, o Sr. Lynch não conseguiu desistir deles, como observou a People em uma entrevista de 2024 com ele. “Eu vi o que estava escrito na parede e dizia: ‘Você vai morrer em uma semana se não parar’”, disse Lynch à publicação em novembro.
Embora ele tenha parado, já era tarde demais: preso em casa e incapaz de trabalhar no set, o Sr. Lynch mal conseguia atravessar uma sala.
No entanto, antes que a nicotina o alcançasse – e contra evidências médicas e lógicas incontestáveis - Lynch fez para si mesmo um anúncio das muitas maneiras pelas quais um cigarro pode ser usado para sugerir humor, criar atmosferas, pontuar diálogos ou gravar espaço dentro de um quadro cinematográfico. O perigo inerente ao fumo, as suas associações barulhentas e a sua sujidade absoluta serviram como contraponto ao resto de uma imagem visual que, no sentido da indumentária, era inofensivamente branda ao ponto de ser indefinida.
“Ele sempre usava as mesmas calças cáqui todos os dias”, disse Italo Zucchelli, ex-estilista de moda masculina da Calvin Klein, amigo de Lynch e, gosto deleum adepto de longa data da Meditação Transcendental, uma prática espiritual serena que aparentemente está em desacordo com o trabalho sombrio e muitas vezes violento do Sr. Lynch.
“Ele usava o mesmo blazer básico e camisa branca todos os dias”, continuou Zucchelli. “Seu visual era muito normal, muito americano, fácil e nada sinistro.”
Era como se Lynch estivesse afirmando, em sua apresentação visual pessoal, que, muitas vezes, os pensamentos mais perturbadores, as fantasias barrocas e as sensibilidades extremas ficam escondidos atrás de fachadas de normalidade burguesa.
“Veja ‘Dexter’”, disse Zucchelli, referindo-se ao drama policial da Showtime. “O serial killer é o cara mais comum.” Considere as almas danificadas em “Twin Peaks”, “Eraserhead” ou “Mulholland Drive” do Sr. Lynch. Demônios, doppelgängers sinistros e assassinos psicóticos eram seu povo. Raramente eles pareciam bem. (Não importa que ele próprio tenha sido frequentemente caracterizado como genial e descontraído.)
Se os designers de moda responderam especialmente à visão cinematográfica de Lynch da pequena cidade americana como um lugar ao mesmo tempo tranquilizadoramente familiar e intensamente estranho, isso também faz sentido. Ele estava entre aqueles diretores que construíram personagens diretamente através do figurino.
Em seus tweeds amarrotados em camadas e óculos enormes (desenhados por Patricia Norris, em colaboração com o Sr. Lynch), a curiosa Log Lady de “Twin Peaks” (interpretada por Catherine E.Coulson) poderia ter saído da passarela da Prada. Em seus cardigãs comidos pelas traças e casacos enormes, os modelos masculinos e impassíveis de Raf Simons outono de 2016 O desfile de moda masculina “Nightmares and Dreams” foi abertamente inspirado na versão de Lynch da cultura americana saudável, já dominada pela entropia.
Poucas coisas foram comuns nos chamados universos Lynchianos, lugares caracterizados por explosões nucleares (“Twin Peaks: O Retorno”); sangue coagulado (“Wild at Heart”); e um bebê choroso e deformado (“Eraserhead”). As superfícies não são confiáveis, um ponto que fica bem claro na cena panorâmica da abertura de “Blue Velvet”, em que um céu saturado emoldura uma cerca suburbana totalmente branca e rosas vermelhas de caule longo – uma variedade radioativa que nunca poderia cresceram em qualquer jardim de quintal.
Tudo isso, e a tragédia que rapidamente se segue, em certo nível telegrafa a compreensão astuta do Sr. Lynch sobre a psicologia da cor. Mais do que isso, porém, a cena revela seu dom cirúrgico para dissecar a ameaça que está logo abaixo da pele.